Verissimo Luis Fernando - A eterna privação do zagueiro absoluto (Vide Verissimo) pdf
A PRIMEIRA
ão sei de que material é feita a bola de futebol, hoje. Quando
ganhei a minha primeira bola, ela era feita de couro. Tinha uma
câmara dentro, como nos pneus. Enchia-se a câmara de ar com
uma bomba de bicicleta — ou com os pulmões mesmo, naquele
tempo se tinha fôlego — e ajeitava-se o mamilo da câmara dentro
do couro da melhor maneira possível, antes de amarrar os cordões
da bola, que tinham cadarços como as chuteiras. Isto tudo foi neste
século, sim. Minha primeira bola tinha o tamanho regulamentar, era
uma número cinco autêntica. Os locutores de rádio chamavam a
bola de futebol de “a número cinco”, além de “o esférico”, “a pelota”
etc. O couro da bola tinha cor de couro, ou então era um pouco mais
vermelho. A bola pintada de branco só era usada em jogos
noturnos, não era a verdadeira. O couro reluzia.
Hesitava-se muito antes de dar o primeiro chute na bola
nova, pois o couro começaria a ficar arranhado no primeiro toque.
Era um dilema, você não conseguia resistir ao impulso de levar a
bola para a calçada e começar a narrar seus próprios movimentos
com ela como um locutor entusiasmado — “domina a número cinco,
atenção, vai marcar, dá de charles... goooool! Sensacionaaaaaal!”
— e ao mesmo tempo queria prolongar ao máximo aquela sensação
do couro novo, intocado, em suas mãos. A compulsão de sair
chutando ganhava. Depois de dois dias de futebol na calçada, a
bola nova estava irreconhecível. O couro ia empalidecendo como
um doente. E a primeira coisa que desaparecia era o que depois
mais perdurava na memória, o cheiro de novo. Nenhum prazer do
mundo se igualava ao do cheiro do couro de uma bola de futebol
recém-desembrulhada latejando em suas mãos. (Ainda não se tinha
descoberto a revistinha de sacanagem.) Imagino que o nosso
antepassado que pela primeira vez meteu a mão no buraco de uma
árvore e depois lambeu o mel nos seus dedos tenha tido uma
sensação parecida, a de que a criação é difícil mas dadivosa, e há
mais doçuras no mundo do que as que se têm em casa. Quase tão
bom quanto o cheiro da primeira bola era correr atrás dela, mesmo
que só fôssemos craques na nossa própria apreciação (“Que lance,
senhoras e senhores!” eu gritava, mesmo que só estivesse fazendo
tabela com a parede). Correr atrás da primeira bola é o que nós
todos continuamos fazendo, tamanhos homens, até hoje. E continua
bom.