Tiago Cabral - Um sonho de três noites - baseado na obra de H.P. Lovecraft pdf
17 de março 1925
Os pés, calçados por sapatos de couro velhos e um tanto gastos,
porém muito bem engraxados, afundavam-se na fofa grama
salpicada de lírios brancos. O banco se erguia sobre a grama que já
havia lhe coberto os pés há alguns anos, e nele repousava o escritor.
Seu paletó extremamente alinhado indicava altivez, um contraste
estranho com a inclinação da coluna encurvada fazendo com que seu
rosto se escondesse quase que totalmente por trás do livro cujo título
em inglês significava “A Interpretação dos Sonhos”, de Sigmund
Freud.
O que o escritor ignorava era que o gramado no qual residia o banco
de praça consistia na verdade num circulo verde de no máximo cinco
metros de diâmetro. Além disso, havia apenas um solo áspero e
úmido feito de pedra negra que se erguia de um mar parado e morto.
Ao longe, quatro bestas de tamanho titânico dormiam nas sombras
de um crepúsculo interminável com suas barrigas voltadas para um
céu manchado de nuvens vermelho-sangue a oeste e completamente
negro a leste. Cada besta jazia num ponto cardeal e a única delas que
jazia oculta nas sombras era a do leste. O odor de enxofre era pesado
e sufocante, mas isso não parecia incomodá-lo.
– Pequeno Howard... – tentou um velho mascate se aproximando, as
vestes semelhantes às do escritor. No entanto ele carregava uma
grande mala de couro onde residiam os diversos artigos que deveria
vender. O escritor apenas o ignorou, assim como fez com as bestas
que dormiam no mar. – Você não pode me ignorar, filho.
Ele apenas virou a página.
– Howard! Como ousa ignorar seu próprio pai? – insistiu o mascate.
– Você não é meu pai.
– Como ousa?
– Meu pai está morto.
– Sim. Morto. Abandonado num manicômio. Tinha tanta vida pela
frente... Eu queria ver você crescer, Howard, ser um pai pra você.
Mas as dores da loucura roubaram minha alma e lavaram minha
mente, deixando apenas um corpo inerte – o mascate levou a mão ao
coração, dramático