Zygmunt Bauman -Vida A Credito PDF
Introdução ·
A primeira grande recessão do século XX, que se seguiu à quebra
da Bolsa de Nova York, em 1929, teve como resultado sistemas
políticos rivais e instituições igualmente opostas, num quadro que
deu forma a um mundo polarizado, com forças antagônicas em luta
para estabelecer diferentes visões do desenvolvimento econômico
e, na verdade, diferentes visões de dominação hegemônica. Tudo
isso para nos empurrar mais uma vez em direção à decadência,
quando outra recessão, também originada em Wall Street, nos
açoitou com a força de um tsunami, em 2008.
Agora, contudo, foram adicionados à equação novos fatores
desafiantes e decisivos, que nenhuma outra civilização jamais
conheceu: ameaças ambientais sem precedentes – desastres
naturais atribuídos a mudanças climáticas, níveis inéditos de
pobreza mundial, aumento do “excedente populacional”,
desenvolvimento científico e tecnológico extraordinário –, que
colocam nossas sociedades diante de dilemas gravíssimos; sem
falar no declínio dos sistemas morais e políticos que tinham dado às
instituições da modernidade certo grau de coesão e estabilidade
sociais.
Baseado no trabalho de Zygmunt Bauman, este livro analisa, de
maneira contextualizada historicamente, o significado da primeira
crise financeira global de nosso novo jovem século, estabelecendo
relações e indagando suas causas, implicações e alguns dos
desafios morais e políticos que se apresentam em nosso horizonte.
Assim, esta que pode ser considerada uma passagem “final” no
declínio das instituições políticas da modernidade é analisada aqui,
buscando-se examinar questões para além da dimensão dos
fenômenos econômicos que integraram a crise de Wall Street.
Colapsos financeiros têm lugar em meio a contextos históricos,
em conformações discursivas específicas, de caráter econômico,
político e moral. As duas maiores recessões ocorridas no espaço de
dois séculos têm sido associadas ao processo de longuíssimo prazo
de saída da modernidade e a desdobramentos históricos de grande
monta – do fascismo e do totalitarismo ao neoliberalismo; do
Holocausto à queda do muro de Berlim; do declínio do Estado
etnocrático na América Latina à Guerra do Iraque.1 Ambas as
recessões ocorreram no contexto de enormes processos políticos,
morais, tecnológicos e militares que não podem ser compreendidos
sem a revisão dos arquivos da história e das conformações
ideológicas e econômicas que os produziram.
A crise pode nos apresentar oportunidade para modificar nossa
situação e refletir sobre ela, ocasião para tentar compreender como
chegamos no ponto em que agora nos encontramos e o que
podemos fazer, se é que podemos, para mudar de direção. É
possível que represente uma oportunidade genuína para a produção
de “conhecimento inovador” e para o traçado de novas fronteiras
epistemológicas, com implicações para futuras linhas de pesquisa e
frentes de debate. Isso posto, a crise deve abrir uma possibilidade
de dar um passo atrás e trazer à baila novas perguntas, de rever e
desafiar todos os nossos quadros teóricos, e explorar algumas de
nossas cavernas históricas e mentais com ferramentas analíticas e
epistemológicas mais apropriadas, esperando que possamos assim
nos identificar e aprender com nossa ingenuidade histórica.
Não é o bastante tentar observar, em caráter imediato, as causas
e os efeitos econômicos e financeiros do colapso de setembro de
2008; é desejável um exame completo, uma revisão da estrutura
que deu forma à nossa abordagem da economia, avaliando, nas
encruzilhadas históricas atuais, que instituições sobreviverão e
quais podem se tornar redundantes ou mesmo ser “extintas”.
A colossal debacle de Wall Street, em 2008, e o subsequente
colapso do setor bancário não sinalizaram a derrocada do
capitalismo. Isso fica evidente não apenas na maneira nítida como
Bauman fala a esse respeito aqui; também se manifesta no
movimento dos líderes mundiais, quando se reuniram no encontro
do G-20 em Washington, pouco depois do desastre nas bolsas,
ratificando seu compromisso com o dogma da economia de livre
mercado2 e atuando para transformar o Estado numa gigantesca
companhia de seguros que emite apólices para os bancos e Wall
Street. De fato, como Bauman sugere, no capitalismo, a cooperação
entre Estado e mercado é uma regra; conflitos entre os dois, se
chegam a surgir, são uma exceção, e os acontecimentos mais
recentes apenas confirmaram essa regra.
A crise financeira global de 2008, e a inabilidade ou relutância
dos governos em regular os setores financeiro e bancário – traço
característico do que Bauman chama de tempos líquidos –, disparou
uma recessão sobre nós, lançando-nos rumo a territórios
desconhecidos. No começo de 2009, a Organização Internacional
do Trabalho (OIT) estimou que o desemprego mundial poderia
aumentar para um arrasador índice de 50 milhões de pessoas. O
Banco Mundial, em seu prognóstico econômico para 2009,3 calculou
em cerca de 53 milhões o número de pessoas que, nos países em
desenvolvimento, permaneceriam no nível de pobreza por efeito da
desaceleração econômica global; mais ainda, em seu relatório para
o primeiro trimestre de 2009, a instituição estimou que o aumento
dos preços de alimentos e combustíveis em 2008 tinham empurrado
outros 130 a 150 milhões de pessoas para a linha da pobreza, e que
era provável que a crise global mantivesse 46 milhões abaixo
“dessa linha, que é de US$ 1,25 por dia”.
Em fevereiro 2009, o maior programa de incentivo econômico na
história dos Estados Unidos foi aprovado pelo Congresso do país.
Esta foi considerada uma vitória do presidente Barack Obama,
menos de um mês depois de assumir o governo. O primeiro mês da
gestão de Obama incluiu um pacote de socorro aos bancos de pelo
menos US$1,5 trilhão (R$2,8 trilhões).4 Mas esses números não são
páreo para a escala do problema no plano global. Em seu relatório
de fevereiro 2009, o Banco Mundial indicava que a recessão
anularia muitos dos avanços conquistados no sentido de reduzir a
pobreza nos países em desenvolvimento.
Na Grã-Bretanha, considerada isoladamente, o retrato não
poderia ser considerado melhor, como mostrou um relatório da
fundação Joseph Rowntree, ao apontar que, “embora a recessão
não vá afetar em grande medida os números da pobreza infantil, ela
sem dúvida irá piorar o perfil da criança pobre”. Esse relatório
estimou que “2,3 milhões de crianças no Reino Unido viverão na
pobreza em 2010, passando ao largo da meta de 1,7 milhão
estabelecido em 1999”.5
Era de se esperar que as maiores vítimas da crise fossem os
mais pobres, dentro ou fora das “economias avançadas”: de modo
inevitável, a crise econômica minaria os planos ajustados pelas
Nações Unidas no sentido de alcançar os objetivos de redução da
pobreza até 2015, estabelecidos nas Metas de Desenvolvimento do
Milênio, em 2000, na Cúpula do Milênio da ONU. Qualquer
progresso na diminuição da mortalidade infantil, que poderia
representar 200 mil a 400 mil crianças a mais morrendo por ano se
a crise persistisse, teria de ser adiado, como admitiu o presidente do
Banco Mundial, Robert Zoellick.
No momento em que este livro foi concluído, tudo isso era
somente a ponta do iceberg, e o Fundo Monetário Internacional
(FMI) alertava que o mundo inteiro teria uma taxa de crescimento
econômico próxima de zero em 2009, enquanto a Organização das
Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) chamava
atenção para o fato de que a fome no mundo atingira 1,02 bilhão de
pessoas.6
Esses números representam o quadro geral em dados bastante
conservadores – se é que alguém está pronto para eles, ou seja,
para aceitar a frieza das estatísticas e dos números como a melhor
maneira de medir e quantificar a miséria humana e os “refugos
humanos”. Contudo, como demonstrarão nossas conversas neste
livro, é preciso muito mais que apenas números para dar conta
dessas ideias. A crise econômica, com os posteriores planos de
governos por todo o mundo para coletivizar a dívida privada do setor
financeiro, também revelou intricadas construções linguísticas e
complexos desenvolvimentos discursivos.
Assim, nos últimos tempos, a linguagem dos direitos mudou: os
cidadãos tornaram-se “clientes”; pacientes temporários ou
permanentes de hospitais tornaram-se “clientes”; a pobreza foi
criminalizada – como Bauman mostra em toda sua obra; e a
“pobreza extrema” tornou-se uma “condição patológica”, mais que
um reflexo da injustiça estrutural – uma “disfunção” daqueles que
são pobres, e não uma disfunção estrutural de um sistema
econômico que gera e reproduz desigualdades;7 e, mais
recentemente, a própria recessão passou a ser vista como uma
questão de “segurança nacional”, no novo idioma implantado pelo
novo Serviço Nacional de Inteligência dos Estados Unidos.8
Esses desdobramentos financeiros e a crise da ortodoxia
econômica no fim do século XX ocorreram como parte de processos
históricos – incluindo a ascensão e queda do Estado de bem-estar
social keynesiano no pós-guerra, a ascensão e queda do Estadonação
e da democracia, todos eles temas que Bauman analisou em
profundidade em inúmeros textos, e que são revisitados em nossas
conversas.9
Há, na visão de Bauman, muitos exemplos de que nossas
percepções do Estado e de sua realidade mudaram, “levando os
mercados consumidores a passar para o lugar deixado pelo
Estado”, fenômeno que se tornou claro desde que o presidente
Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e a primeira-ministra Margaret
Thatcher, no Reino Unido, impuseram políticas de privatização e
desregulamentação com consequências catastróficas no mundo
todo e que levaram ao colapso de 2008.
Outro exemplo dessas mudanças drásticas diz respeito às
mutações do Estado de bem-estar: a finalidade estatutária das
agências criadas para lidar com a pobreza não é mais, diz Bauman,
manter os pobres em boa forma. De fato, a nova tarefa das
agências do Estado é “policiar os pobres”, mantendo “algo como um
gueto sem paredes, um campo de prisioneiros sem arame farpado
(embora densamente contido por torres de vigia)”. Esses são alguns
dos temas que abordaremos aqui, ao ingressarmos num intercâmbio
aberto, franco e interdisciplinar, buscando conferir profundidade aos
últimos desenvolvimentos, em lugar de isolá-los numa perspectiva
econômica estreita e reducionista.