Zygmunt Bauman -44 Cartas Do Mundo Liquido Moderno PDF
Sobre escrever cartas…
de um mundo líquido moderno
Cartas de um mundo líquido moderno… Foi isso que os editores de
La Repubblica delle Donnea me pediram para escrever e enviar aos
seus leitores a cada quinze dias. É o que venho fazendo há quase
dois anos.b
Cartas que vêm do mundo “líquido moderno”, quer dizer, o
mundo que eu, o autor das missivas, e vocês, possíveis, prováveis,
esperados leitores, compartilhamos. O mundo que chamo de
“líquido” porque, como todos os líquidos, ele jamais se imobiliza
nem conserva sua forma por muito tempo. Tudo ou quase tudo em
nosso mundo está sempre em mudança: as modas que seguimos e
os objetos que despertam nossa atenção (uma atenção, aliás, em
constante mudança de foco, que hoje se afasta das coisas e dos
acontecimentos que nos atraíam ontem, que amanhã se distanciará
das coisas e acontecimentos que nos instigam hoje); as coisas que
sonhamos e que tememos, aquelas que desejamos e odiamos, as
que nos enchem de esperanças e as que nos enchem de aflição.
As circunstâncias que nos cercam – com as quais ganhamos
nosso sustento e tentamos planejar o futuro, aquelas pelas quais
nos ligamos a algumas pessoas e nos desligamos (ou somos
desligados) de outras – também estão sempre mudando.
Oportunidades de alegria e ameaças de novos sofrimentos fluem ou
flutuam no ar, vêm, voltam e mudam de lugar; na maioria das vezes,
fazem isso com tamanha rapidez e agilidade que não conseguimos
tomar uma providência sensata e eficaz para direcioná-las ou
redirecioná-las, para conservá-las ou interceptá-las.
Para resumir a história: esse mundo, nosso mundo líquido
moderno, sempre nos surpreende; o que hoje parece correto e
apropriado amanhã pode muito bem se tornar fútil, fantasioso ou
lamentavelmente equivocado. Suspeitamos que isso possa
acontecer e pensamos que, tal como o mundo que é nosso lar, nós,
seus moradores, planejadores, atores, usuários e vítimas, devemos
estar sempre prontos a mudar: todos precisam ser, como diz a
palavra da moda, “flexíveis”. Por isso, ansiamos por mais
informações sobre o que ocorre e o que poderá ocorrer. Felizmente,
dispomos hoje de algo que nossos pais nunca puderam imaginar: a
internet e a web mundial, as “autoestradas de informação” que nos
conectam de imediato, “em tempo real”, a todo e qualquer canto
remoto do planeta, e tudo isso dentro de pequenos celulares ou
iPods que carregamos conosco no bolso, dia e noite, para onde
quer que nos desloquemos.
Felizmente? Bem, talvez nem tanto, pois o pesadelo da
informação insuficiente que fez nossos pais sofrerem foi substituído
pelo pesadelo ainda mais terrível da enxurrada de informações que
ameaça nos afogar, nos impede de nadar ou mergulhar (coisas
diferentes de flutuar ou surfar). Como filtrar as notícias que
importam no meio de tanto lixo inútil e irrelevante? Como captar as
mensagens significativas entre o alarido sem nexo? Na balbúrdia de
opiniões e sugestões contraditórias, parece que nos falta uma
máquina de debulhar para separar o joio do trigo na montanha de
mentiras, ilusões, refugo e lixo.
Proponho-me fazer nessas cartas o que essa máquina
hipotética (desgraçadamente ausente, e talvez por muito tempo)
poderia realizar por nós se a tivéssemos à mão: pelo menos
começar a separar as coisas que importam das matérias não
substanciais – que parecem ser cada vez mais importantes –, dos
alarmes falsos e dos fogos de palha. Mas como nosso mundo
líquido moderno está em constante movimento, somos
perpetuamente arrastados na viagem, por bem ou por mal,
conscientemente ou não, alegres ou infelizes, mesmo que tentemos
ficar parados, sem sair do lugar. Essas cartas, portanto, só podem
ser “relatos de viagem” – embora seu autor não tenha arredado o pé
de Leeds, a cidade onde mora. As histórias que elas irão contar
serão “conferências de viagem”: histórias de e sobre viagens.
Walter Benjamin, filósofo com um olhar especialmente arguto
para qualquer indício de lógica e sistemática nas trepidações
culturais em aparência mais difusas e aleatórias, costumava
distinguir dois tipos de narrativa: as histórias de marinheiro e as
histórias de camponês. As primeiras são narrativas de ações
bizarras e inauditas que se passam em lugares distantes, nunca
visitados (provavelmente jamais o serão), de monstros e mutantes,
bruxas, feiticeiros, cavaleiros galantes e cruéis malfeitores – seres
que não combinam com as pessoas que ouvem o relato de tantas
proezas; eles fazem coisas que outros (sobretudo os ouvintes
enfeitiçados pelas histórias do marinheiro) jamais imaginariam ver e
menos ainda realizar.
As histórias de camponês, ao contrário, são narrativas de
acontecimentos próximos, aparentemente familiares, como o eterno
ciclo das estações do ano ou as tarefas cotidianas da casa, da terra
e da lavoura. Eu disse aparentemente familiares porque também é
ilusória a sensação de conhecermos esses acontecimentos muito
bem e de confiarmos que nada de novo há a aprender com eles ou
sobre eles – consequência de serem esses eventos próximos
demais dos nossos olhos para podermos enxergá-los com nitidez.
Nada escapa tanto e tão obstinadamente a nossa atenção quanto
“as coisas que estão à mão”, o que está “sempre aí” e “não muda
nunca”. É como se elas “se escondessem sob a claridade” – sob a
luz enganosa e ilusória da familiaridade! Sua “normalidade” é uma
espécie de cortina que impede qualquer inspeção.
Para tornar essas coisas objeto de interesse e de exame
detalhado, é preciso, em primeiro lugar, recortá-las e separá-las do
ciclo vicioso da rotina cotidiana que, apesar de confortadora, nos
embota os sentidos. É preciso, em primeiro lugar, pô-las à parte e
mantê-las a distância, antes que possamos conceber examiná-las
de modo correto: quer dizer, sua alegada “normalidade”, um blefe,
deve ser desde logo denunciada. Só depois poderemos desnudar e
explorar os mistérios abundantes e profundos que elas escondem,
aqueles que nos parecem estranhos e intrigantes quando
começamos a pensar neles.
A distinção estabelecida por Benjamin quase um século atrás
não é mais tão clara hoje quanto naquela época: os marinheiros não
têm mais o monopólio de visitar terras estranhas. Num mundo
globalizado, onde lugar algum está de fato isolado e a salvo do
impacto de qualquer outro lugar do planeta, deve ser difícil até
distinguir as histórias narradas por um camponês daquelas contadas
por um marinheiro.
O que tentarei fazer em minhas cartas é escrever histórias de
marinheiros como se fossem contadas por camponeses. Narrativas
baseadas em vidas comuns e costumeiras como forma de revelar e
expor o que elas têm de extraordinário e que nos passaria
despercebido. Se quisermos tornar verdadeiramente familiares
coisas que parecem familiares, é preciso antes de mais nada fazêlas
estranhas.
A missão é bem difícil. O sucesso não é garantido, e o êxito
completo, para dizer o mínimo, é bastante duvidoso. Mas representa
a missão que nós, autor e leitores dessas 44 cartas, tentaremos
cumprir em nossa aventura conjunta.
Mas por que exatamente 44 cartas? Será que a escolha desse
número tem um significado especial, ou é fruto do acaso, de uma
decisão arbitrária, de uma escolha aleatória? Desconfio que a
maioria dos leitores (provavelmente todos, à exceção dos
poloneses) se fará essa pergunta. Devo a eles uma explicação.
O maior poeta romântico polonês, Adam Mickiewicz, evocou
uma figura misteriosa, mistura ou híbrido de embaixador da
liberdade, seu porta-voz e procurador legal, de um lado, e
governador ou vice-regente na Terra, de outro. “O nome dele é
Quarenta e Quatro”. Assim a criatura obscura foi apresentada por
um dos personagens do poema de Mickiewicz no momento do
anúncio/premonição de sua iminente chegada. Mas por que esse
nome? Muitos historiadores da literatura, bem mais capacitados
para encontrar uma resposta que eu, tentaram em vão solucionar o
mistério. Alguns sugeriram que o nome escolhido corresponde à
soma dos valores numéricos das letras do nome do poeta escrito
em hebraico – possível alusão à elevada posição dele na luta pela
libertação da Polônia e à origem judia de sua mãe. A interpretação
em geral aceita é que Mickiewicz escolheu essa frase sonora e
majestosa em polonês (czterdziesci i cztery) no auge da inspiração
– mais motivado (ou talvez sem motivação alguma, como tende a
ocorrer na maioria dos lampejos de inspiração) por uma
preocupação com a harmonia poética do que pela intenção de
transmitir uma mensagem cifrada.
As cartas reunidas neste livro foram redigidas ao longo de
quase dois anos. Quantas delas deviam ser incluídas na obra?
Quando e onde parar? O impulso para escrever cartas do mundo
moderno líquido provavelmente nunca se esgotará – essa espécie
de mundo que sempre saca da manga novas surpresas, que todo
dia inventa novos desafios à compreensão humana, com certeza
providenciará para que o ímpeto não cesse. Surpresas e desafios
estão espalhados por todos os tipos de experiência humana – e por
isso é inevitável que toda parada para relatá-los por escrito e além
disso limitar seu escopo deve ser fruto de uma escolha arbitrária.
Essas cartas não são exceções. Seu número foi escolhido
arbitrariamente.
Mas por que este número, e não outro qualquer? Porque o
número 44, graças a Adam Mickiewicz, representa o respeito e a
esperança pela chegada da liberdade. Assim, ele assinala, ainda
que de maneira oblíqua e somente para os iniciados, o motivo que
inspira e orienta essas missivas. O espectro da liberdade está
presente nas 44 cartas, cujos temas, todavia, são variados – mesmo
que de maneira invisível, como é da natureza dos espectros dignos
deste nome.
a Revista semanal dirigida ao público feminino, dedicada a temas relativos a
política, economia e cultura contemporâneas. (N.T.)
b As cartas foram escritas em 2008 e 2009, e reunidas, editadas e ampliadas para
este livro.