Zuenir Ventura - Sagrada Familia PDF
A injeção
Naquela noite perdi o equilíbrio e a inocência. Caí no chão ao ver o
que não devia. Talvez tivesse sido a noite mais fria daquele inverno,
e ainda por cima eu estava apertado para fazer xixi. Sabia que não
podia sair dali, mas já não aguentava, e o frio aumentava minha
aflição. Eu tiritava. Enfiava as mãos nos bolsos, esfregava as pernas
uma na outra, sapateava, usava todos os recursos para não urinar
na calça.
Tia Nonoca costumava tomar injeção numa pequena enfermaria
no fundo da farmácia, reservada para isso e para primeiros
socorros. Eu tinha que permanecer na porta pedindo aos eventuais
fregueses que voltassem dentro de meia hora: “O seu Canuto está
ocupado aplicando injeção, não pode atender agora”, era o que eu
deveria dizer. Acontecia sempre entre sete e oito horas, depois do
jantar, mas nesses dias minha tia não jantava.
Quando sua irmã, suas duas filhas e eu íamos para a mesa, ela
aproveitava para sentar-se diante do espelho da penteadeira do seu
quarto, realizando um ritual meticuloso. Penteava o cabelo negro e
liso, arrumando seu lindo coque, e passava pó de arroz, a única
pintura que usava. Abria uma caixa de papelão redonda, retirava
cuidadosamente a esponja com um pompom rosa em cima, e
aplicava o pó nas maçãs do rosto. Em seguida, retirava o excesso
com a mão, deixando apenas uma camada quase imperceptível.
“Está aparecendo muito?”, perguntava invariavelmente.
Eu comia correndo para pegar pelo menos o finalzinho dessa
cerimônia, que me fascinava tanto. Terminava com minha tia abrindo
o frasco de extrato Royal Briar, no qual molhava caprichosamente a
ponta do dedo indicador e massageava a parte de trás da orelha. Já
saindo, olhava-se de corpo inteiro no espelho, virava-se de perfil,
encolhia a barriga que quase não tinha, jogava os seios para a
frente, mordia os lábios várias vezes para torná-los mais vermelhos,
pegava o casaco comprido de lã e dizia: “Vamos.” Eu retardava o
olhar naquelas ondulações meio rebeldes que um vestido preto,
apertado, aprisionava com dificuldade.
Naquela noite, para ser o primeiro a chegar à calçada, desci a
escada correndo. Esperei minha tia e seguimos de mãos dadas. Ao
passar pelo bar do seu Juca, ela adivinhou o que eu queria: uma
novidade que acabara de chegar à cidade e que consistia numa
caixinha amarela com um tipo de bala que não era para chupar nem
engolir, mas para ficar mastigando. Ninguém sabia qual era a graça,
mas todo mundo queria experimentar.
— Na volta eu compro o seu chiclets — ela anunciou,
caprichando na pronúncia inglesa. — Mas não pode mascar de boca
aberta.
Fiz com a cabeça que sim. “E nem fazer barulho com a boca”,
completei por ela.
— E a calça comprida? Tou com muito frio nas pernas.
— Amanhã eu cuido disso.
Ela prometera convencer seu irmão, meu pai, de que aquele
“varapau” ou “pinto-calçudo”, como dizia, já era por demais crescido
para continuar usando calça curta, ainda mais naquele frio. Eu tinha
meus 9 anos e estava passando as férias de julho na casa dela,
como sempre. Suas idas à farmácia ocorriam umas três vezes por
semana, e eram para tratamento da saúde, conforme alegava.
Nunca soube bem o que tinha, já que parecia muito saudável. Mas
também nunca perguntei.
Eu gostava de acompanhá-la porque sempre arranjava um jeito
de ficar com um olho na rua para ver quem entrava e outro no
balcão de tampo de vidro onde estavam expostos os produtos à
venda: sabonete, creme dental, esmalte de unha, vidros de perfume,
além dos remédios. A farmácia era para mim um mundo inebriante
de cores, imagens e sobretudo aromas. Às vezes tenho a impressão
de que toda a memória daquele tempo foi feita de fragrâncias, fixouse
em mim através do nariz — é olfativa, mais que visual.
Minha tia usava o sabonete de Reuter, bem ali à vista e cuja
propaganda falava em “algo intangível que se chama formosura,
que toda mulher ambiciona”. Nem sempre eu entendia o que os
cartazes diziam: “Aura de frescor e encantamento para o toucador”
é o que vinha escrito debaixo do desenho colorido de três mulheres
lindas que usavam os produtos de Elisabeth Arden. O creme dental
Squibb provocava uma “esplêndida sensação que invade todo o
meio bucal”.
O que mais me excitava, no entanto, era o reclame do sabonete
de minha tia, que garantia às mulheres que se banhavam com ele
uma “cútis deliciosamente asseada”. Eu desconhecia o significado
de “cútis”, mas toda vez que lia aquelas três palavras sentia um leve
arrepio que me remetia imediatamente a ela, ao cheiro de seu corpo
quando saía do banho, à maciez de sua pele ao tocar na minha por
acaso, à sedução que essas vagas sensações exerciam sobre mim.
— Vamos à picada, dona Nonoca? — disse o farmacêutico, logo
que atendeu o último freguês.
— Só se o senhor prometer que não vai doer, seu Canuto.
Eles não tinham por que rir do que disseram. Injeção sempre
me pareceu coisa séria. Mas riram. Ela, então, de um jeito
malicioso, como eu nunca tinha visto antes.
— Fica firme aí, hein, Manezinho — ele me disse piscando um
olho, e eu passei a odiá-lo a partir daquele momento. Eu detestava
duas coisas: usar calças curtas e que me chamassem daquele
apelido. “Meu nome é Manuéu, com u, Manuéu Araújo” (me
orgulhava da grafia sem saber ainda que era um erro do escrivão),
resmunguei. Até hoje me arrependo de não ter revidado com um
xingamento que ouvira de minha própria tia, quando um dia se
referiu a ele, falando para tia Celeste, como um “mulato peludo e
nojento”.
Acho, porém, que meu ódio repentino tinha mais a ver com
aquele jeito cúmplice e debochado de rirem e de se olharem.
Percebendo minha irritação, o peludo nojento tentou me
subornar: “Assim que surgir o primeiro fio de barba no seu rosto, vou
te dar um presente de 13 cruzeiros e cinquenta centavos, ouviu
bem? Treze cruzeiros e cinquenta centavos.” Eu já sabia que se
tratava do novo aparelho de barbear, o Gillette Tech. Eu devia convir
que era um bom presente. Mesmo assim, a promessa não me
apazigou. Ele deve ter notado, porque foi lá dentro, apanhou
qualquer coisa e trouxe para mim. “Cheira um pouquinho”, disse
baixinho, todo persuasivo, “você vai gostar”. Era um maço de gaze
umedecida que levei ao nariz e cujo cheiro era de fato inebriante.
Imediatamente, senti uma mistura conflitante de torpor e euforia,
anestesia e excitação, como se eu tivesse me desprendido de meu
corpo e viajado para outra esfera da realidade, de forma tão intensa
que demorei uma eternidade para voltar ao normal. O coração
acelerou suas batidas e a visão ficou confusa. Só mais tarde vim a
saber o que era aquela substância, quando já tinha me apegado ao
seu cheiro de maneira obsessiva.
Um pouco ainda sob o efeito da inalação, fui para trás do balcão
brincar de farmacêutico, mas sem tirar o olho da porta. Como queria
ser médico quando crescesse, já ia treinando ali com meus
hipotéticos clientes. “A senhora tá com dor de cabeça? Tome
Melhoral, que é melhor e não faz mal.” Gostava de repetir os
reclames que a gente ouvia no rádio. Sabia todos de cor, mesmo
quando desconhecia o sentido. Não fazia a mínima ideia do que
fossem “cólicas menstruais” nem “padecimentos dos órgãos úteroovarianos”,
mas repetia feito um papagaio os anúncios do
Regulador Gesteira. “A senhora tem tristezas súbitas, palpitação,
tonturas, calor e dores de cabeça, enjoo, congestões internas?
Tome o Regulador Gesteira.”
“Não quer levar também um tubo de Colgate, o creme dental
que elimina o mau hálito, ou prefere a Água de Colônia Regina, ‘de
perfume flagrante e ameno’?” “Se fosse a senhora, trocava para
Royal Briar, ‘o perfume que deixa saudades’, e que minha tia usa. E
o senhor aí, não quer tomar o Iodalb, que não deixa o coração
envelhecer?”
Dessa vez mal pude passar o olho pela vitrine. A vontade de
urinar era tanta que larguei o balcão, meu posto de vigilância, e saí
correndo para o banheiro, não dava para esperar. Além do mais,
quem iria entrar na farmácia àquela hora? A umidade e a neblina
tinham se encarregado de esvaziar as ruas, mesmo antes da
chegada do trem “Vassoura”, assim chamado porque “varria” todo
mundo para dentro de casa às nove horas.
Como um monstro de outra era, a máquina rompia a neblina
bufando e soltando baforadas de fumaça que se confundia com o
nevoeiro. O barulho, abafado, assustador, chegava antes. Só alguns
minutos depois ia se ver o que já se ouvia. Em noites como essa, a
bruma espessa envolvia a cidade de tal maneira que se perdiam os
contornos e a nitidez.
Hitler aterrorizava a Europa, outro navio brasileiro tinha sido
afundado pelos nazistas, o sétimo naquele ano de 1942, o mundo
ameaçava pegar fogo, os ecos da guerra distante já eram ouvidos,
mas Florida, cidade das flores, dormia em paz, pelo menos por
enquanto. A única pessoa a passar, completamente bêbado, fora
“Pé de chumbo”, arrastando as pernas inchadas que lhe deram o
apelido. Se meu primo Emílson estivesse comigo, ele gritaria:
“Péééé de chumbo!” E a gente se esconderia para ouvir a resposta:
“Pé de chumbo é a mãe, seu filho da puta!”
A Pharmacia Canuto ficava no número 107 da avenida
Amsterdam, a principal da cidade, e tinha duas portas largas, feitas
de folhas de aço flexíveis que, depois de abertas por meio de uma
mola, permaneciam enroladas em cima. Um pequeno gancho na
ponta de uma vara tornava possível fechá-las, puxando-as para
baixo com um barulho que sempre assustava quem estava
passando. Lembrava o disparo de uma metralhadora. Para me
bajular, seu Canuto às vezes me deixava fechar uma dessas portas.
Muito magro, eu tinha que usar todo o peso do corpo para arriá-las.
Me sentia forte, tanto quanto aquele homem parado ali na entrada,
segurando nas costas um enorme peixe. De papelão, o anúncio do
Óleo de Fígado de Bacalhau era muito mais alto do que eu. Mas eu
chegaria lá.
As prateleiras da farmácia iam até o teto; na frente, havia os
balcões para atender a freguesia. No fundo ficava a bancada de
embrulho, com a pilha de papel, o rolo de barbante e a caixa
registradora. Disfarçadas entre as estantes, duas portas estreitas: à