Beleza e tristeza, último romance de Yasunari Kawabata (1899-1972), é uma obra-prima de complexidade e sutileza que, juntamente com os romances O país das neves (1937), Nuvens de pássaros brancos (1951) e O ruído da montanha (1954), o tornou conhecido no Ocidente e lhe valeu o Prémio Nobel de 1968.
Nesta história de paixão, ao mesmo tempo lírica e aterradora, narrada com a mais desconcertante serenidade, Oki Toshio, um escritor de meia-idade, faz uma viagem nostálgica a Kyoto para ouvir os sinos dos templos soarem na noite do Ano Novo. É movido também por outro desejo: reencontrar Otoko, que fora sua amante vinte e quatro anos antes e que agora é uma pintora de renome.
Ainda muito bonita, ela vive num monastério com sua pupila Keiko, jovem de temperamento intensamente amoral e apaixonado. À medida que a vida dos três se entrelaça irremediavelmente, Keiko torna-se a principal agente de destruição deste vasto e inquietante drama de vingança.
Mesclam-se aqui penetrantes observações psicológicas e um questionamento profundo sobre o sentido da arte e da literatura, bem como evocações surpreendentemente poéticas dos jardins e monastérios do velho Japão. Beleza e tristeza é uma meditação sutil sobre temas caros ao autor: a solidão e a morte, o amor e o erotismo.
Yasunari Kawabata - Beleza e Tristeza PDF
PREFÁCIO
NA ÚLTIMA EXTREMIDADE "Mas um romance tem de ser
necessariamente uma coisa bela?", pergunta uma personagem ainda
no início de Beleza e tristeza. A pergunta fica suspensa no ar,
ninguém lhe responde. Nem o autor, Kawabata, o faz, como
narrador. A resposta seria: talvez não. Ou talvez sim, um romance se
torna necessariamente uma coisa bela ainda que feito de coisas
"feias". O que um romance não tem necessariamente de ser é
incômodo. Quem sabe apenas os grandes romances incomodem.
Pode ser inadequado iniciar um prefácio dizendo ao leitor,
prestes a entrar num romance, que este provavelmente o
incomodará. Se assim for, será preciso então lembrar, num momento
em que a cultura está sendo domesticada ou outra vez domesticada,
que o incômodo em uma obra de arte é um dos sinais seguros de que
se está diante de uma obra de valor. Seria o caso de lembrar, numa
palavra, que o incômodo é uma positividade da obra de arte. Num
momento em que os filmes de sucesso não devem incomodar
ninguém - nenhuma minoria, nenhuma religião, nenhum partido,
nenhum político, nenhuma comunidade - e quando a literatura, ou
"literatura", deve ser a mais digestiva possível para atenuar o
desconforto de uma sala de espera de aeroporto ou da própria e
atroz viagem de avião, ou para amenizar o desassossego de um
dramático corredor de hospital onde se espera uma notícia sobre a
vida ou a morte, nesse momento a grande literatura não pode
esquecer que não existe para reafirmar as pessoas em seus costumes
cotidianos mas, exatamente, para arrancá-las de seu torpor
conformista e fazê-las sentir alguma coisa, senão pensar alguma
coisa. Não se trata do incômodo da brutalidade e da violência, como
é costume hoje e que quase não mais incomoda: isso é fácil de
conseguir-se. Trata-se do incômodo da normalidade aparente, o
incômodo do que não se consegue evitar, embora a causa do
incômodo seja a mais comum possível, o incômodo da singeleza (ou
da enormidade) que é ser humano; o incômodo, mesmo, do esforço
de exercer a delicadeza, o incômodo das coisas belas; o incômodo de
lidar com o real e o concreto e com o simbólico e o abstrato. O
incômodo, enfim, provocado por este romance, incômodo que
principia sorrateiro até se instalar no leitor com uma intensidade que
é melhor, agora, não qualificar.
Provocar o incômodo como recurso de estilo (estilo é bem a
palavra, não técnica): questão central e um dos principais atrativos
deste romance que recorre ao simbólico e ao abstrato para tocar mais
fundo no concreto e no real, como diz que procurava fazer, desde
jovem, o escritor representado nestas páginas. E recurso que consiste
em aprofundar essa "qualidade de expressão", armada sobre o
concreto e o real, para, inversamente, alcançar o simbólico e a
abstração. Aqui se aninha, para o leitor atento, um outro fator de
interesse de Beleza e tristeza: a busca do modo contemporâneo de
expressar alguma coisa que de contemporâneo nada tem: o amor e o
amor difícil ou indevido ou não assumido ou abandonado, e o ciúme
e a vingança, e a indecisão e o sexo e a perversão ou aquilo que a
normalidade chama de perversão. Kawabata escreve este romance
em meados dos anos 60 do século passado - o vigésimo, na
contagem costumeira -, quando uma das linguagens da arte que
então fazia furor, embora dividindo a cena com outras, era
exatamente a do abstracionismo, em especial a do abstracionismo
informal. A busca de um modo contemporâneo de expressão
literária, e de um modo que se proponha na literatura como o
equivalente daquele abstracionismo, não é uma suposição atrevida
ou indevida por parte do crítico, mas tema demasiado explícito nesta
história com duas personagens pintoras e na qual há mais de uma
referência a artistas plásticos (modernos, senão contemporâneos)
largamente conhecidos.
É verdade que os artistas citados expressamente por Kawabata -
Rodin, Chagall, Odilon Redon - são antes expoentes de um certo
simbolismo (os dois últimos, até mesmo de um certo surrealismo)
que do abstracionismo, em especial do abstracionismo informal,
também chamado de expressionismo abstrato, que agitou aqueles
anos 60. A aproximação entre abstracionismo e simbolismo que faz
Kawabata não é, no entanto, indevida: há entre os dois uma
vinculação certa, ainda que nem sempre aparente.
E isso tanto na arte ocidental, à qual Kawabata se refere de modo
direto neste livro, quanto na arte japonesa "clássica" à qual ele
também alude e na qual essas duas linguagens igualmente se
fundem sob mais de um aspecto (nesse sentido, são eloqüentes as
hesitações das duas pintoras do romance em relação às telas que
produzem, que ora lhes parecem abstratas, ora não tanto, ou ora
parecem abstratas a uma delas e não tanto à outra). Não sempre para
ser simbólico um desenho ou pintura precisa mostrar-se abstrato;
mas o processo de abstração a que se submete uma imagem realista
e concreta é um caminho seguro para dar-lhe um significado
simbólico, se a abstração não chegar às últimas conseqüências. Em
que ponto deter-se para que a obra consiga um efeito ou outro, é a
questão - para o artista plástico e para aquele que opera com as
palavras. Kawabata pergunta-se claramente a si mesmo, pela voz da
personagem do escritor e ao lado dela, se ele próprio conseguirá ser
um escritor de seu tempo e assim propor uma literatura abstrata até
o ponto em que uma literatura pode ser abstrata. Ele quer testar uma
hipótese, quer experimentar uma linguagem.
(Talvez apenas para descobrir, ao final, que aquilo que fazia antes
já era suficientemente abstrato e suficientemente de seu tempo,
embora sendo também de outro tempo.) A crítica costuma falar da
influência que o realismo e o naturalismo ocidentais exerceram sobre
Kawabata; mas se pelo menos o realismo é visível, em seus traços
centrais, nas páginas de Beleza e tristeza, fica igualmente visível que
eles ali não surgem na versão padronizada do ocidente mas, sim, na
transcriação própria não só à literatura de Kawabata como à
literatura japonesa de sua época e de épocas anteriores. E nisso
Kawabata, inspirando-se em formas tradicionais de sua cultura, é
simultaneamente um homem de seu tempo, do tempo do mundo
mais largo que o envolve e a seu país de origem. Não conheço
suficientemente a biografia cotidiana de Kawabata para saber se ele
era um freqüentador do mundo flutuante japonês - os bares, cafés
literários, galerias e salões variados -, feito das discussões artísticas,
estéticas e filosóficas e que às vezes recebe o nome curioso de
boêmia. Mesmo que não comparecesse aos ambientes menos ou
mais existencialistas onde esses tópicos corriam então soltos à época
em que escrevia este livro, é inegável que também ele, embora na
solidão eventual de algum estúdio como o do escritor descrito no
romance, flutuava nesse mundo, não estava imune a ele e quer saber
a resposta a esta pergunta atormentadora: escrevo como meu tempo
me permite e pede, pinto como meu tempo me permite e pede?,
questão tão ou mais central para um criador que aquela outra mais
conhecida: escrevo de um modo meu, pinto de um modo que é só
meu, tenho uma voz própria?
Se Beleza e tristeza tivesse sido escrito hoje, é provável que a
questão a atormentar suas personagens, e o autor dessas
personagens, fosse a que já sabemos: escrevo, pinto de um modo
pós-moderno ou "apenas" moderno? Não poderei ou deverei operar
com o instrumental pós-moderno (o equivalente, digamos, em carga
provocadora, ao abstracionismo dos anos 60 quando comparado
com o figurativismo moderno e mesmo modernista, como aquele, na
cena brasileira, de Anita Malfai e Tarsila do Amaral) para desse
modo tocar mais fundo nas questões desta vida que vivo agora? É
difícil, quase impossível imaginar Kawabata indiferente a esse
debate, tivesse ele sobrevivido aos primeiros anos da década de 70.
Alimentando-se do Japão arcaico, como se pode ler em seu discurso
(O Japão, a beleza e eu mesmo] de recebimento do prêmio Nobel,
Kawabata mostrou-se, como tantos outros artistas japoneses,
intensamente sensível às idéias de seu próprio tempo - não só
àquelas de seu país como às do mundo. O grande artista não se
encerra nas fronteiras estreitas e sufocantes de nenhum
nacionalismo: o grande artista é não apenas internacional como, e
aqui solta-se a palavra que irrita as mentes que se acreditam
corretas, cosmopolita. Uma cultura nacional é estreita demais para a
grande arte, e os grandes artistas japoneses mostram-se acaso mais
sensíveis a essa verdade do que muitos outros do lado de cá. Isso,
talvez porque o Japão, sendo tão tradicional como é ou como
costuma ser representado, é ao mesmo tempo uma das culturas mais
densamente pós-modernas - e isso, paradoxalmente, desde muito
tempo, desde antes do pós-modernismo. Prova-o o fato de que
quando sociólogos, antropólogos e filósofos necessitam estudar e
citar fatos concretos da pós-modernidade, a referência escolhida é
sempre o Japão (uma das duas referências, em todo caso: a outra é o
Brasil - mas essa é outra história). Para ficar apenas num exemplo
superficial (no entanto, essa é a questão: o pós-modernismo se
desenrola todo à superfície das coisas, o que não quer dizer que seja,
ele, superficial…), pense-se nas fachadas elétricas de Tóquio que
deslumbram, desnorteiam, maravilham as duas personagens recémchegadas
do no entanto super-moderno EUA no filme Lost in
Translation, de Sophie Coppola (2003) - assim como deslumbram e
desnorteiam tantas outras personagens da ficção e da, como se diz,
vida real, quer dizer, nós, cada um de nós. Um indício de que
Kawabata não deixaria de entrar no debate e na prática do pósmodernismo
está na recorrência, em suas páginas, do tema da
beleza, tema claramente pós-moderno. Por vezes, o índice dessa
presença insistente aparece já no título de suas obras: Existência e
descoberta da beleza, Beleza imortal, O Japão, a beleza e eu mesmo
(ensaios), A casa das belas adormecidas (ficção), estou usando o
termo beleza quando poderia ter optado por aquele que é talvez
mais correto ou mais comum por aqui, belo; faço-o em simetria ao
título deste romance e para reforçar o ponto. Outras vezes, a beleza
vem manifesta nas personagens ou nos motores, nos focos das
narrativas (belas mulheres, mulheres que não são apenas belas
circunstanciais, belas de passagem, ocasionalmente belas, mas de
fato belas, mulheres que fazem da beleza sua essência; ou as artes
visuais que se colocam a questão do belo; ou a dança, com a questão
inevitável da beleza dos gestos, dos movimentos e dos corpos), caso
de Escuna da planície, Histórias da palma da mão e País das neves,
obras de ficção. E, ainda e até mesmo, em A velha capital, escrito
logo depois da destruição imensa acarretada pela segunda guerra
mundial e que chamou a atenção do representante da Academia
Sueca destacado para apresentar Kawabata na premiação do Nobel,
em 1968, por se tratar, disse ele, de um romance que, "mesmo na
onda de violenta americanização do pós-guerra, delicadamente
lembrava a necessidade de salvar algo da beleza e individualidade
do novo típicos do antigo Japão". É que a beleza é uma idéia que
reconquistou seu direito de presença nesta pós-modernidade depois
de banida de cena por uma modernidade que se ocupava
centralmente de seu oposto, o Feio (ainda que para transformá-lo em
categoria do… Belo), esse mesmo Feio visível ainda hoje nas peças
dessa jovem arte britânica atual dos irmãos Chapman (em suas
bonecas de tamanho natural com pênis no lugar do nariz e ânus no
lugar da boca) ou de Marc Quinn (e seu molde em cera da própria
cabeça contendo sangue verdadeiro tirado de seu próprio corpo) e
que são bem mais modernos ou bem menos pós-modernos do que se
crêem e do que se acredita. É desnecessário destacar que a beleza é
uma questão central da cultura japonesa, como o próprio Kawabata
sublinha em O Japão, a beleza e eu mesmo - beleza da natureza (à
qual pertence a bela mulher, tanto quanto pertence ela ao mundo da
cultura), beleza dos sentimentos, beleza da reflexão, beleza da vida e
beleza da morte, beleza de encontrar forças para continuar vivendo e
beleza de encontrar forças para o suicídio e no suicídio; beleza da
arte e beleza do erotismo e beleza do sexo, a beleza do pescoço longo
e alvo da mulher amada e a beleza da navalha que por um instante
se cogita de mergulhar naquela carne sedosa por nenhuma outra
razão além daquela quase exigida por essa mesma carne ou pelo ato
em si… Assim, quase sem dar nenhum passo adicional e específico
nessa direção, o Japão tornou-se pós-moderno como resultado de
seu esforço moderno de aproximação com o ocidente (a partir da
restauração Meiji, que significa "governo esclarecido", entre 1868 e
1912) e como resultado da paciência que mostrou esperando que o
ocidente ele mesmo se transformasse naquele pós-moderno que
convinha ao Japão… Desnecessário destacar que o recurso ao
abstrato ou ao simbólico, senão como instrumento único para tanto
pelo menos como um instrumento para tanto privilegiado, abre o
caminho para tratar do belo, para fazer do belo um tema central da
literatura e com isso, e mesmo assim, e apesar disso, tocar nas coisas
concretas e realistas… E o que, ainda, pode haver de mais pósmoderno
ou, simplesmente, contemporâneo, do que esse desejo de
que a arte (talvez não só a arte) mude e desapareça, se extinga,
desejo expresso pela mais jovem das personagens de Beleza e
tristeza, Keiko, ela mesma uma pintora que, defendendo esse
princípio, assusta a artista mais velha, "mais moderna" ou "menos
abstrata", Otoko, num postulado estético e existencial que reaparece,
em modo adequadamente simbólico, mais ao final do livro, na
história do cadáver de uma princesa encontrado com uma foto
evanescente sobre uma placa de vidro segura pelas mãos inertes
porém retesadas… Um desejo que talvez assombrou a arte moderna,