Numa noite de verão, num bosque, quatro jovens enamorados encontram-se e desencontram-se: Lisandro ama Hérmia que ama Lisandro e é amada por Demétrio, que é amado por Helena; depois, Demétrio ama Helena, que ama Demétrio e é amada por Lisandro, que é amado por Hérmia. Na manhã seguinte, tudo se resolve, e há um casamento triplo, pois casam-se também o Duque de Atenas e a Rainha das amazonas. Na festa, no palácio do Duque, apresenta-se uma peça de teatro amador, escrita e encenada por trabalhadores locais. É hilariante de tão ruim a "comédia trágica", que teve ensaio naquela noite de verão, naquele bosque, habitado por fadas e duendes que têm seu Rei e sua Rainha, que disputam a guarda de um menino indiano, e por isso esta Rainha apaixona-se, naquela noite de verão, por um mortal com cabeça de burro.
Ação e movimentação, paixões e casamentos, brigas e reconciliações, equívocos e finais felizes. É um Shakespeare muito divertido e nada trágico, um "sonho" originalmente escrito para uma festa de casamento na vida real.
William Shakespeare - Sonho de uma noite de verão PDF
Cena I
Atenas. O palácio de Teseu. Entram Teseu, Hipólita, Filóstrato e
pessoas do séqüito.
TESEU — Depressa, bela Hipólita, aproxima-se a hora de
nossas núpcias. Quatro dias felizes nos trarão uma outra lua.
Mas, para mim, como esta lua velha se extingue lentamente!
Ela retarda meus anelos, tal como o faz madrasta ou viúva que
retém os bens do herdeiro.
HIPÓLITA — Mergulharão depressa quatro dias na negra noite;
quatro noites, presto, farão escoar o tempo como em sonhos. E
então a lua que, como arco argênteo. no céu ora se encurva,
verá a noite solene do esposório.
TESEU — Vai, Filóstrato, concita os atenienses para a festa,
desperta o alegre e buliçoso espírito da alegria, despacha para
os ritos fúnebres a tristeza, que essa pálida hóspede não vai
bem em nossas pompas. (Sai Filóstrato.) De espada em mão te
fiz a corte, Hipólita; o coração te conquistei à custa de violência;
mas quero desposar-te com música de tom mais auspicioso,
com pompas, com triunfos, com festejos.
(Entram Egeu, Hérmia, Lisandro e Demétrio.)
EGEU — Salve, Teseu, nosso famoso duque!
TESEU — Bom Egeu, obrigado. Que há de novo?
EGEU — Cheio de dor, venho fazer-te queixa de minha própria
filha, Hérmia querida. Vem para cá, Demétrio. Nobre lorde, tem
este homem o meu consentimento para casar com ela. Agora
avança. Lisandro. E este, meu príncipe gracioso, o peito de
Hérmia traz enfeitiçado. Sim, Lisandro, tu mesmo, com tuas
rimas! Prendas de amor com ela tu trocaste; sob a sua janela, à
luz da lua, cantaste-lhe canções com voz fingida, versos de
amor fingido, e cativaste as impressões de sua fantasia com
cachos de cabelo, anéis, brinquedos, ramalhetes, docinhos,
ninharias, mensageiros de efeito decisivo nas jovens ainda
brandas. Com astúcia, à minha filha o coração furtaste,
mudaste-lhe a filial obediência em dura teimosia. Por tudo isso,
meu mui gracioso duque, se ela, agora. diante de Vossa Graça,
com Demétrio não quiser se casar, eu me reporto à antiga lei de
Atenas que confere aos pais direito de dispor dos filhos. É
minha filha, posso dispor dela. Ou a entregarei para este
cavalheiro, ou para a morte, o que, sem mais delongas,
segundo nossa lei, deve ser feito.
TESEU — Hérmia, que respondeis? Sede prudente, bela
menina. Como a um deus devíeis ver sempre vosso pai, um
deus que vossa formosura plasmou, pois sois apenas a cera a
que ele conferiu a forma, restando-lhe o poder de conservá-la,
ou de esfazer a imagem. É Demétrio cavalheiro mui digno.
HÉRMIA — E assim Lisandro.
TESEU — Sim, em si mesmo; mas uma vez que ele com vosso
pai não conta, deveríeis o outro considerar como o mais digno.
HÉRMIA — Ah, se meu pai o visse com meus olhos!
TESEU — Com o juízo dele é que razoável fora que vossos
olhos vissem.
HÉRMIA — Vossa Graça me perdoe, mas não sei que força
oculta me dá tanta ousadia, nem compreendo como a minha
modéstia me consente defender minha causa em tal presença.
Suplico a Vossa Graça declarar-me o que de pior me tocará por
sorte, se eu me negar a desposar Demétrio.
TESEU — Ou morrer morte crua, ou, para sempre, sair da
sociedade. Por tudo isso, formosa Hérmia, falai com vossas
próprias aspirações, pensai na mocidade, examinai a fundo
vosso sangue e vede se é possível suportardes um hábito de
freira, para o caso de recusardes a paterna escolha, ficar
encarcerada para sempre num convento sombrio, como estéril
irmã passar a vida, hinos dolentes cantar à lua infrutuosa e fria.
Abençoados três vezes os que podem, dessa maneira, dominar
o sangue e a peregrinação fazer virgínea. Mas muito mais feliz
na terra é a rosa que destilar se deixa do que quantas no
espinho virgem crescem, vivem, morrem em sua solitária
beatitude.
HÉRMIA — Assim crescer prefiro, meu bom lorde. viver e
perecer, a ver os sacros privilégios de minha mocidade em
poder de um senhor, cujo aborrido jugo minha alma do íntimo
repele.
TESEU — Refleti mais um pouco. Na outra lua quando tiver de
ser selado o liame sempiterno entre mim e a minha amada —
nesse dia tereis de decidir-vos ou a morrer por desacato franco
à vontade paterna, ou a ser esposa de Demétrio, ou a fazer no
altar de Diana juramento de eterna austeridade num viver
virginal e solitário.
DEMÉTRIO — Hérmia, concorda; e tu, Lisandro, deixa da
pretensão de opor teus fracos títulos ao meu direito certo e
indiscutível.
LISANDRO — Do pai de Hérmia, Demétrio, o afeto tendes;
casai com ele, então; seja ela minha.
EGEU — Lisandro zombador, é bem verdade que o meu amor é
dele, e pois vai dar-lhe tudo quanto possuo: Hérmia pertenceme;
todo o direito que sobre ela tenho a Demétrio o transfiro.
LISANDRO — Eu sou, milorde. de família tão nobre quanto a
dele; de patrimônio igual somos herdeiros; maior é o meu amor.
Quanto aos favores da fortuna, mimoso sou como ele, se não
mais. Finalmente, o que suplanta todas essas vanglórias: sou
amado da irresistível Hérmia. Por que causa não me bater em
prol do meu direito? Demétrio — ao rosto lanço-lhe isto — a
filha de Nedar namorou e a alma ganhou-lhe, e ela, coitada,
piamente o adora, adora até quase à loucura a este homem
volúvel e culpado.
TESEU — Sim, já ouvira falar por alto nisso e pretendia
conversar com Demétrio a esse respeito; mas por excesso de
negócios próprios não me lembrou fazê-lo. Mas, Demétrio,
vinde comigo; e vós, também, Egeu. Tenho de vos dizer duas
palavras muito em particular. No que respeita vossa pessoa,
irresistível Hérmia, fazei esforço para que os caprichos deixeis
de acordo com o querer paterno; se não, será forçoso vos
dobrardes às leis de Atenas que, de nenhum modo, podemos
atenuar: ou morte crua, ou o juramento de viver solteira. Minha
Hipólita, vamos. Que se passa contigo. meu amor? Vinde
conosco, Demétrio e Egeu; necessidade tenho de ambos vós,
não somente para a festa, como também para tratar convosco
de algo que aos dois de perto diz respeito.
EGEU — Alegres e obedientes vos seguimos.
(Saem Teseu, Hipólita, Egeu, Demétrio e séqüito.)
LISANDRO — Então, minha querida, por que as faces tão
pálidas assim? Qual o motivo de murcharem tão rápido essas
rosas?
HÉRMIA — Talvez por falta da água que lhes viesse da
tempestade dos meus próprios olhos.
LISANDRO — Oh Deus! Por tudo quanto tenho lido ou das
lendas e histórias escutado, em tempo algum teve um tranqüilo
curso o verdadeiro amor. Ou era grande do sangue a
diferença...
HÉRMIA — Oh sofrimento! Nascer no alto e aceitar o cativeiro!
LISANDRO — ... ou mui disparatadas as idades...
HÉRMIA — Oh dor! Unir-se a mocidade às cãs!
LISANDRO — ... ou tudo os pais, sozinhos, decidiam...
HÉRMIA — Não há maior inferno: estranhos olhos para
escolher o amor!
LISANDRO — ... ou, quando havia simpatia na escolha, a
guerra, as doenças, e a morte, conjuradas, o assaltavam, qual
simples som deixando-o, transitório, tão curto corno um sonho,
movediço como uma sombra instável, tão ligeiro como raio de
noite tempestuosa que, de súbito, rasga o céu e a terra, mas
que antes de podermos dizer “Vede!” pelas fauces das trevas é
tragado. Tudo o que brilha, assim, em ruína acaba.
HÉRMIA — Se sempre contrariados foram todos os amantes
sinceros, é que o próprio destino o determina desse modo. Que
nos ensine, pois, a ser pacientes a nossa provação, já que é
desdita fatal dos namorados, como os sonhos, pensamentos,
suspiros, dores, lágrimas, do pobre amor são companheiros
certos.
LISANDRO — Isso consola. Porém, Hérmia, escuta-me: a sete
léguas, só, de Atenas mora minha tia, uma viúva muito rica que,
por filhos não ter, me considera seu herdeiro exclusivo. Em
casa dela, minha Hérmia encantadora, poderemos casar-nos,
por ficarmos, então, fora das rigorosas leis dos atenienses. Se
me amas, foge da mansão paterna na noite de amanhã. No
bosquezinho a uma légua distante da cidade deverás encontrarme,
justamente onde uma vez te vi em companhia de Helena a
realizar os sacros ritos de uma manhã de maio.
HÉRMIA — Meu bondoso Lisandro, eu juro pelo mais potente
arco do deus Cupido, por sua seta melhor de penas de ouro,
pelas meigas pombas de Vênus, pelo que une as almas e
confere ao amor virentes palmas, pelas chamas em que se
abrasou Dido após abandoná-la o Teucro infido, pelas juras que
a todos os instantes violado têm os homens inconstantes, mais
do que numerosas, infinitas, do que as que foram por mulheres
ditas: amanhã, sem faltar, no grato abrigo de que falamos,
estarei contigo.
LISANDRO — Não faltes à palavra. Ai vem Helena.
(Entra Helena.)
HÉRMIA — Formosa Helena, por que tanta pressa?
HELENA — Eu, formosa? Desmente-te depressa. Ama
Demétrio a tua formosura; nesses olhos encontra a luz mais
pura; acha ele em tua voz mais melodia do que o pastor na
doce cotovia, quando o trigo nos campos enverdece e o
pilriteiro de botões se tece. Se, como as doenças, fosse
contagiosa também a formosura, eu, jubilosa, me fizera infectar,
ó Hérmia bela! de teus encantos, sem maior cautela; com tua
voz ficara nos ouvidos; teu olhar, nestes olhos combalidos; tua
fala de música esquisita consolidar viria a minha dita. Se o
mundo fosse meu, ficando fora Demétrio, de todo ele, sem
demora, me desfizera, caso conseguisse tua beleza obter, tua
meiguice, porque sendo, como és, o meu contraste, seu
coração bondoso conquistaste.
HÉRMIA — Faço-lhe cara feia, ele me adora.
HELENA — Tivesse eu risos feios desde agora!
HÉRMIA — Digo-lhe doestos, e ele amor me vota.
HELENA — Quem me dera na voz tão doce nota!
HÉRMIA — Vai de par seu ardor com o meu desdém.
HELENA — Com o seu desprezo o meu amor também.
HÉRMIA — De tal loucura a culpa não é minha.
HELENA — É de tua beleza. Fosse a minha!
HÉRMIA — Coragem! Por mais tempo ele não há de fazer juras
com tal tenacidade, que eu e Lisandro, há um momento,
apenas, resolvemos fugir, sem mais, de Atenas. Para mim era
Atenas o paraíso, quando não me encantara o seu sorriso.
Como é terrível este fogo interno para, assim, transformar o céu
no inferno!
LISANDRO — Não queremos, Helena, ocultar nada: amanhã,
quando Febe a luz prateada nas águas refletir, cobrindo a relva
de pérolas e encanto dando à selva, hora mais que propícia
para a fuga de quem, como nós dois, o amor conjuga, eu e
Hérmia combinamos da cidade deixar as portas, rumo à
liberdade.
HÉRMIA — Naquele bosque em que, sobre canteiros de
primavera, instantes tão fagueiros passamos tantas vezes,
atenuando com nossas confissões este ardor brando, eu e
Lisandro, que minha alma adora, nos reuniremos ao raiar da
aurora. Se em Atenas não temos pouso amigo, alhures
acharemos grato abrigo. Reza por nós, minha querida Helena, e
com Demétrio encontres vida amena. Cumpre, Lisandro, agora
o prometido por mais que te angustie o dolorido coração: do
alimento dos amantes privaremos a vista alguns instantes.
LISANDRO — O voto hei de cumprir, minha Hérmia bela. (Sai
Hérmia.) Formosa Helena, adeus. Como eu a ela, possa
Demétrio ser-te dedicado, transformando em ventura o teu
cuidado. (Sai.)
HELENA — Como é possível que a felicidade possa reinar em
tal desigualdade! Em toda Atenas sou considerada tão formosa
quanto Hérmia; mas a nada quer Demétrio atender. Ele,
somente, ver não pode o que enxerga toda a gente. Erra ele ao
se deixar pender do lindo semblante de Hérmia, tal como eu,
caindo em igual erro, prendo o coração na sua compostura sem
senão. As coisas baixas, sem valia alguma, de crassas deixa o
Amor leves qual pluma. O Amor não vê com os olhos, mas com
a mente; por isso é alado, e cego, e tão potente. Nunca deu
provas de apurado gosto; cego e de asas: emblema de
desgosto. Eterna criança: eis como é apelidado, por ser sempre
na escolha malogrado. Como os meninos quebram juramentos,
perjura o Amor a todos os momentos. Assim Demétrio, quando
Hérmia não via, me granizava juras noite e dia; mas ao calor do
seu formoso riso dissolveu-se de súbito o granizo. Da formosa
Hérmia vou contar-lhe a fuga. É certeza: no bosque ele
madruga, para segui-la. A mim essa notícia vai ensejar de vê-lo
a hora propícia. Se o vir na ida e na volta, de corrida, feliz me
considero e enriquecida. (Sai.)