Os acontecimentos históricos narrados nas duas partes do drama Henrique IV, ocupam pouco mais de uma década, indo desde a batalha de Holmedon Hill, até a ascensão do Rei Henrique V, ocorrida em 1413. Com a criação de Falstaff e de Henrique Percy, as duas figuras máximas dos dramas históricos, atinge Shakespeare o auge de sua grandeza artística.
William Shakespeare - Henrique IV (parte II) PDF
CENA I
Warkworth; diante do castelo de Northumberland. Entra Lorde
Bardolfo.
LORDE BARDOLFO — Quem é o porteiro aqui?
(O porteiro abre o portão.)
Onde está o conde?
PORTEIRO — A quem devo anunciar?
LORDE BARDOLFO — Dá-lhe a notícia de que Lorde Bardolfo
o está esperando.
PORTEIRO — Sua Excelência se encontra no jardim; se Vossa
Honra quiser bater à porta, ele mesmo abrirá.
(Entra Northumberland.)
LORDE BARDOLFO — Vem vindo o conde.
(Sai o porteiro.)
NORTHUMBERLAND — Lorde Bardolfo, que notícias? Cada
minuto agora engendra um fato grave. Os tempos são difíceis; a
discórdia, qual cavalo de trato primoroso, insana, o freio perde
e, à sua passagem, derruba quanto encontra.
LORDE BARDOLFO — Nobre conde, trago-vos certas novas
de Shrewsbury.
NORTHUMBERLAND — Boas, se Deus quiser.
LORDE BARDOLFO — Como as deseja o coração: o rei se
acha ferido mortalmente e, na glória de milorde vosso filho, foi
morto o Príncipe Harry; às mãos de Douglas os dois Blunts
morreram; Westmoreland e João, o jovem príncipe, com
Stafford a batalha abandonaram; o roliço chumaço de
Monmouth, Sir John, caiu nas mãos de vosso filho. Dia assim,
disputado e tão bem ganho, nunca o tempo exornou com tanto
lustre, desde as glórias de César.
NORTHUMBERLAND — Quem vos disse? Vistes o campo?
Viestes de Shrewsbury?
LORDE BARDOLFO — Falei, milorde, com alguém que veio
justamente de lá, um gentil-homem de bom sangue e alto
nome, que a notícia como certa me deu sem que eu o pedisse.
NORTHUMBERLAND — Ai vem meu criado Travers, que eu
mandei na última terça-feira a colher novas.
LORDE BARDOLFO — Alcancei-o, milorde, no caminho; não
traz maior certeza do que quanto pudesse ter ouvido de meus
lábios.
(Entra Travers.)
NORTHUMBERLAND — Que boas novas, Travers, vêm
convosco?
TRAVERS — Milorde, Sir John Umfrevile fez-me voltar da
estrada com notícias ótimas; porque melhor montado,
ultrapassou-me. Depois dele, a esporear com todo o empenho,
veio um fidalgo, morto de fadiga, que ao meu lado estacou para
ao cavalo sangrento dar descanso. Perguntou-me pela estrada
de Chester; dele soube notícias certas de Shrewsbury; disse
que a rebelião não tinha tido sorte e que o esporão de Percy
estava frio. Com isso, as rédeas larga ao bruto altivo e,
inclinando-se, enterra o armado salto nos flancos palpitantes do
coitado, té o botão da roseta. Desse modo, partiu sem falar
mais, só parecendo que tragava o caminho.
NORTHUMBERLAND — Ah! Novamente: frio estava o esporão
de Henrique Percy? Em vez de Esporão-quente, Esporão-frio?
Que a rebelião tivera sorte adversa?
LORDE BARDOLFO — Milorde, ouvi-me: se milorde moço,
vosso filho, a vitória não obteve, pela minha honra, troco a
baronia por um laço de fita. Não falemos mais nisso.
NORTHUMBERLAND — Então por que esse gentil-homem,
que por Travers passou, disse isso tudo?
LORDE BARDOLFO — Esse tal? Com certeza algum medroso
que roubara o cavalo e que falava por falar. Eis notícias mais
recentes.
(Entra Morton.)
NORTHUMBERLAND — Sim, a fronte deste homem, como a
capa de certos livros, fala de tragédia. É esse o aspecto da
praia em que a ressaca deixou a marca do império
incontrastável. Fala, Morton: vens vindo de Shrewsbury?
MORTON — Sim, meu nobre senhor, vim de Shrewsbury, onde
a Morte terrível pôs a máscara mais feia que possuía para o
nosso partido amedrontar.
NORTHUMBERLAND — Como se encontram meu filho e meu
irmão? Tremes; mais apta que tua língua, a palidez do rosto me
diz o teu recado. Um mensageiro como tu, já sem forças,
alquebrado, no olhar a Morte, louco de infortúnio, a cortina de
Príamo, nas horas mortas da noite, descerrou, querendo dar-lhe
a notícia de que Tróia ardia pela metade. Mas o fogo Príamo
encontrou antes que ele a língua achasse, e a morte do meu
Percy eu, sem que fales. Dir-me-ias: “Vosso filho fez tais atos;
vosso irmão outros tais: o nobre Douglas assim lutou”,
enchendo-me os ouvidos vorazes com seus feitos audaciosos.
Mas no fim, entupindo-os de verdade, com um suspiro esfarias
os encômios, para finalizares: “Filho, irmão, todos morreram”.
MORTON — Douglas ainda vive, bem como vosso irmão.
Quanto a milorde vosso filho...
NORTHUMBERLAND — Ah! morreu! Vede que língua pronta
tem a suspeita. Quem receia algo que conhecer lhe infunde
medo, lê nos olhos dos outros, por instinto, se deu justamente o
que receava. Agora fala, Morton; dize ao conde que seu
pressentimento é mentiroso, e eu terei esse insulto por
brinquedo, sobre tornar-te rico pela ofensa.
MORTON — Sois muito grande para eu contestar-vos; fiel, o
pressentimento; o medo, justo.
NORTHUMBERLAND — Mas, apesar de tudo, não me venhas
revelar que Harry Percy já não vive. Estranha confissão leio em
teus olhos; abanas a cabeça, parecendo-te medo ou falta
contar toda a verdade. Se morreu, conta-o; não ofende a língua
que sua morte anuncia; erra somente quem calunia um morto,
não quem fala para dizer que o morto não tem vida. Contudo, o
portador de infaustas novas exerce um triste ofício; sua fala
ressoa como dobre de finados que a perda de um amigo nos
recorda.
LORDE BARDOLFO — Não posso crer, milorde, que morresse.
MORTON — Dói-me ter de obrigar-vos a dar crédito ao que não
desejara — Deus o sabe — jamais ter visto. Mas estes meus
olhos o viram dessangrado, revidando, quase sem força e
alento, os feros golpes de Harry Monmouth, cuja incontida
cólera fez o invencível Percy vir ao solo de onde, vivo, não mais
devia alçar-se. Em suma, a morte de Harry Percy — cujo
espírito animava os mais remissos — logo que foi sabida, o
ardor e o fogo gelou dos mais dispostos de sua tropa. Ao
partido o seu aço dava a têmpera; morto ele, a ser o que eram
todos voltam: chumbo por demais rombo e assaz pesado. E
como as coisas que em si mesmas pesam, quando forçadas,
voam mais velozes, nossos homens, com a perda de Harry
Percy, tão leves se tornaram pelo medo, que, semelhos à
flecha, quando a mira procura, desertaram da batalha, só
cuidando de pôr a vida a salvo. Foi então que o nobre
Worcester deixou-se aprisionar e que esse escocês louco,
Douglas sangrento, cuja espada excelsa três espectros do rei já
havia morto, sentiu baquear-lhe o peito e honrou a vergonha
dos que volviam costas, sendo preso na fuga, ao tropeçar de
puro medo. O rei venceu, em suma, e a vosso encontro,
milorde, já enviou forças ligeiras, à testa das quais vêm João de
Lencastre e Westmoreland. Eis todas as notícias.
NORTHUMBERLAND — Para chorar, o tempo há de sobrarme.
O veneno é remédio; essas notícias, que, se eu bom
estivesse, mal fariam, doente, de certo modo, me curaram. E tal
como o infeliz, de juntas fracas pela febre, qual mola que se
encurva sob o peso da vida, e que num rasgo de furor, como o
fogo, se liberta dos braços do enfermeiro: assim meus
membros, de dor enfraquecidos e furiosos, são três vezes o que
eram. Fora, fora, muleta inútil! E a manopla dura de escamas
de aço que, daqui por diante, vai servir-me de luva. Fora, gorro
de doente! És proteção muito irrisória para a cabeça que visar
costumam príncipes altanados. Minha fronte cingi de ferro, e
que a hora se aproxime mais funesta que o tempo e o
sofrimento possam trazer para ameaçar o iroso
Northumberland. Que a terra e o céu se beijem! Que a mão da
natureza não detenha mais as ondas selvagens! A ordem
morra! Deixe o mundo de ser, daqui por diante, um palco em
que as contendas se sucedem com atos enfadonhos! Que no
peito de todos reine o espírito somente do primogênito Caim,
que os faça ávidos só de sangue, porque o drama brutal possa
chegar ao termo exato e o coveiro dos mortos seja a Noite.
TRAVERS — Essa emoção, milorde, vos faz mal.
LORDE BARDOLFO — Um, meu caro conde, a honra à
prudência.
MORTON — A vida das pessoas que vos seguem pende de
vossas forças. Entregando-vos desse modo às paixões, é
inevitável que cedo elas decaiam. Calculastes, meu nobre
lorde, as conseqüências todas desta guerra e pesastes seus
azares antes de à frente dela vos postardes. Conjeturastes,
certo, a sós convosco, que, na distribuição dos golpes, vosso
filho talvez morresse. Bem sabíeis que ele andava por cima dos
perigos, numa crista, da qual era provável que viesse a
despenhar-se, sem transpô-la. Sabíeis que não era invulnerável
sua carne aos ataques e que o nobre caráter o impelia aos
mores riscos. Contudo, o incentivastes: Vai! Nenhuma dessas
razões tão fortes deter pode vossa obstinada ação. Que é que
de estranho sucedeu? Que gerou a audaz empresa se não o
que era justo se previsse?
LORDE BARDOLFO — Quantos nos enredamos nesta perda,
sabíamos que o mar que navegávamos fervilhava de escolhos
e que tínhamos uma em dez ocasiões de nos salvarmos.
Todavia, arriscamos, que a esperança da glória compensava a
expectativa do perigo provável. Já que fomos derrotados,
tentemos novamente. Vamos! Joguemos tudo: os bens e os
corpos!
MORTON — É mais que tempo. Nobre e alto senhor, sei de
fonte segura, e a nova posso secundar, que o valente Bispo de
York se levantou com tropas bem munidas. É um homem que
com dupla segurança prende e liga os adeptos do partido.
Milorde vosso filho só dispunha de corpos; meras sombras,
aparências de homens para lutar, porque o vocábulo “rebelião”
lhes trazia dissociados a alma e o corpo; com náuseas e
forçados é que lutavam, como quem ingere poção. De nosso
lado apenas tínhamos suas armas, porque as almas, à palavra
“rebelião”, se tornaram congeladas como peixes no tanque.
Mas o bispo transforma a insurreição em religião. Porque
honesto e de santos pensamentos, de alma e corpo é seguido,
e, ademais, sabe fortalecer a causa que defende com o sangue
de Ricardo, o bom, raspado das pedras de Pomfret; do céu
deriva seus princípios e a causa da revolta, propondo-se livrar a
infeliz terra que geme sob o grande Bolingbroke. Os grandes e
os pequenos se lhe agregam.
NORTHUMBERLAND — Já o sabia; contudo, a falar franco,
fizera-me esquecê-lo a dor de agora. Ficai comigo e aconselhaime
a via mais segura da glória e da vingança. Expedi cartas;
conquistai amigos; nunca são por demais nestes perigos.
(Saem.)