Em "Um Chapéu Para Viagem", Zélia Gattai relata sua viagem sentimental como mulher e testemunha do marido, Jorge Amado. Neste livro, o mundo da política e da literatura se embaralham, assim como a nitidez dos eventos históricos e a turvação da memória pessoal. As origens familiares e as recordações da juventude de Jorge e de Zélia se misturam às ações corriqueiras do presente e aos sobrevoos da imaginação. Mario de Andrade, Carlos Lacerda, Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi e outros personagens desfilam ao lado de parentes distantes cheios de histórias.
Zelia Gattai - Um Chapeu Para Viagem Pdf
DEZEMBRO DE 1945 — VÉSPERA DEVIAGEM
UM CHAPÉU PARA VIAGEM
Fanny Rechulski, secretária de Jorge, quis saber qual chapéu eu
usaria na viagem.
— Chapéu? — admirei-me.
Não cogitara disso, nem pensara usar chapéu... Havia muito
tempo que não possuía nenhum.
— E você acha que é preciso chapéu para viajar de avião, Fanny?
— Bem, preciso não é... mas cairia bem. O chapéu sempre dá um
toque chique, dá mais importância... Teus sogros não vão esperar
vocês no aeroporto?
— Os velhos e Joelson também... — respondi, rindo para Fanny
com malícia.
Joelson, o segundo irmão de Jorge, estudante de Medicina, havia
pouco estivera em São Paulo e tínhamos pilheriado, inventando um
imaginário casamento de Fanny com ele.
Joelson regressara para o Rio mas a brincadeira perdurava.
Fanny já trabalhava para Jorge havia algum tempo, quando eu
me mudei para o apartamento que ele ocupava na Avenida São João,
em agosto de 1945. A partir daquela data, tornara-se pública a nossa
ligação. A notícia espalhou-se rapidamente e não faltaram
comentários.
Bastante relacionada e por dentro dos disse-que-disses, em geral
desfavoráveis, Fanny me punha a par das últimas novidades. A
minha união com Jorge incomodara muita gente, transformara-se
num pequeno escândalo, repercutindo nos meios de esquerda e em
portas de livrarias. Agora íamos partir deixando para trás todos
aqueles mexericos.
Ao regressar do almoço, naquela tarde, Fanny trouxe uma caixa
de papelão redonda, dentro dela um chapéu de feltro bege.
É
— É para tua viagem, combina com a saia marrom e a blusa
creme que você vai usar.
Ganhei de presente de minha tia Cora, está quase novo, veja. Usei
pouco, só umas duas ou três vezes.
A tia de Fanny, chapeleira famosa, cobria e enfeitava as cabeças
das damas mais chiques de São Paulo e Rio. Um chapéu com etiqueta
"Cora" custava um dinheirão, não era para qualquer uma. Segundo
Fanny, a tia ficara "podre de rica" fazendo chapéus. Aquele que eu
acabava de ganhar era sóbrio e elegante: aba levantada de um lado,
caída do outro, cobrindo a orelha direita em ligeira curva.
Sem dar tempo para outras explicações, meti o elegante "Cora" na
cabeça: — Deixa ver se me fica bem...
Segurando pela parte desabada, puxei-o para baixo. Ouvi apenas
um grito assustado de Fanny: — Ai!
Meus dedos se enterravam na parte levemente em curva do feltro,
varando-a de lado a lado. A pobre moça, coitada, estava sem jeito. Eu
não lhe dera oportunidade de me fazer o histórico da preciosa
prenda. Ela a havia recebido das mãos da tia com a recomendação de
que tivesse todo o cuidado ao colocá-lo na cabeça. Uma freguesa grãfina,
que o encomendara, havia estragado o chapéu, esgarçando o
feltro ao experimentá-lo, forçando os dedos na aba, sem modos,
estabanadamente (como eu o fizera, certamente), e, ao vê-lo
inutilizado, ainda tivera a petulância de não assumir a culpa,
recusando-se a. receber e a pagar a encomenda.
Muito decepcionada com o acidente, Fanny me explicou tudo.
Tratei de tranquilizá-la: — Pode deixar, Fanny, que eu dou um
jeitinho...
Após uma passadela de ferro com um pano úmido e vapor e um
cerzidinho invisível, o chapéu voltou à sua forma, quase perfeito.
Enchapelada, chique e distinta, eu estava comme il faut para
enfrentar os sogros.