Urbanoides é uma coletânea de crônicas que retratam alguns dos dramas e dilemas do homem contemporâneo. Na ausência de ídolos e deuses, ele os cria para satisfazer seu ego e justificar as suas ações cotidianas. Ao mesmo tempo, deuses antigos abdicam de seu status, descem do seu pedestal e convivem conosco, reles mortais, pelo prazer de amanhecer mais um dia.
Urbanoides - Zander Catta Preta pdf
Pale blue eyes
– pós Velvet Underground
Diziam que ele era o rapaz perfeito: inteligente, hábil, bonito,
educado. Era obediente e levado, sabia instintivamente quando
podia forçar uma situação ou quando poderia deixar o destino cuidar
da situação. Era excelente na escola, notas à perfeição. Achava que
tinha
o mundo em suas mãos.
De fato tinha.
Um dia, encontrou um par de olhos azuis. Eram os primeiros olhos
azuis que via. Pele branca, cabelo negro e olhos como bolas de
gude. Encantou-se por eles e decidiu que queria acordar ao seu
lado o resto de sua vida. Que queria ter filhos com esses olhos. Que
envelheceriam juntos e ficariam vendo o tempo passar quando se
aposentassem. Comprariam um café em Paris. No primeiro piso o
café, no segundo livros e doces. E isso era bom e certo.
Mas ele sabia que estava escrito que não ficariam juntos. Ela lhe
passaria ao largo da vida. Nunca mais se lembraria do seu nome ou
que sentava a uma carteira na segunda série. Até porque ele
adotaria um outro nome para si quando chegasse à maioridade. Um
nome mais curto que o da chamada, um apelido mais forte. Por sua
vez, ela mal se lembraria do franzino de franjas que lembrava uma
menina. E ele ainda usava um nome curto. Não forte, nem feroz.
Apenas infantil, um apelido de criança.
E ele tinha lido o livro de sua própria vida várias vezes.
Numa noite acordou, vagou pela sala vazia e sentou-se no sofá.
Acendeu um abajur e começou a ler um gibi de terror qualquer. Teve
um pouco de medo de andar descalço de volta para a cama: “A Mão
vai me pegar!” diria duas semanas mais tarde para a mãe que lhe
proibiria café, açúcar e gibis de terror.
“Não compro mais gibi de terror para você. Super-heróis pode!
Mônica também!” “Mônica é de menina, mãe!” “E aquele de
dinossauros?” “Esse é legal! Quero o do Tio Patinhas também!” “Tá
bem!”
Mas esse diálogo se daria apenas duas semanas depois de sua
primeira virada. Leu o gibi de cabo a rabo duas vezes e só
conseguiu pregar os olhos quando o sol raiava.
Antes de amanhecer decidiu.
“Não quero ganhar a vida. Vou ser ganho por ela.”
Sempre sabia o que os outros iriam dizer, adivinhava o que lhes
encantaria mais, sabia que aos onze trocaria de escola, aos
dezessete entraria numa faculdade, aos vinte e cinco terminaria o
seu mestrado, aos trinta dominaria o mundo, aos noventa morreria
odiado, sem filhos, sem legado mas imprimiria a sua marca
indelével na história. Cem anos depois de sua morte, a humanidade
encolheria para um sexto mas teria sua expectativa de vida
aumentada em quatro vezes. Teríamos Lua e Marte colonizados,
andaríamos em carros voadores e trabalharíamos três horas por dia
apertando botões. Mas antes passaríamos por sua ditadura que
expurgaria as fronteiras e as liberdades. Seria um senhor terrível e
poderoso nos sessenta anos de seu reinado mundial.
“Não quero ser rei. Quero ser um pai.” Falou para a sombra que o
zelava do umbral da porta.
Ela fechou os livros que carregava ao mesmo tempo em que ele se
calava.
“Teu sangue herdará o mundo de uma forma que poucos jamais
conseguiram. Serás um deus entre os deuses, uma lenda entre as
lendas. O maior dos homens.” Disse a sombra.
Decidiu que não queria o mundo mesmo. Os olhos azuis valiam
mais.
Foi para a escola, olhando com cuidado para os cantos escuros do
caminho para ver se A Mão não aparecia para pegar a sua perna.
“Você não vai comer mais açúcar! Que é isso! Menino dessa idade
virando a noite!”
Não deu bola para a vó que o levava. Parou na banca, comprou
figurinhas. Dividiu em dois pacotes. Uma para as repetidas e a outra
com as que não tinha colado no álbum, entregou para a vó.
“Tó!”
Esperaram o portão abrir e entrou para as aulas. Sabia o que a
professora iria dizer antes mesmo de vê-la. Encontrou o Capitão
Asa cantando Sideral e guardou na memória a letra da música.
Subiu para a sala e sentou-se atrás dos olhos azuis que nem por
relance o fitavam.
Ao chegar em casa recebeu a notícia que iriam se mudar do Méier
no meio do ano. Ele teria de sair da escola e iriam para
Copacabana.
Num átimo o seu mundo caiu. Tudo aquilo que tinha lido no livro de
sua vida, todos os planos futuros, a certeza das coisas que
ocorreriam, não serviria mais de nada e agora via, ainda que
desmanchando no ar, os restos dos fios que ligavam suas mãos e
pés ao nada. Ainda era uma marionete do destino, mas não sabia
mais qual o seu papel na peça.
Chorou um pouquinho.
“Não quero ir para a outra escola.” “Mas lá tem praia, dá para catar
tatuí e você gosta tanto.” “Quero ficar na vila com as amendoeiras e
a pipa e o jogo de bolinhas de gude.” “A escola de lá é melhor.” “Eu
quero essa aqui!” “Não tem jeito, filhinho.”
Chorou mais um bocado.
As férias o fizeram esquecer as aulas e mudou-se no meio de julho.
Ao entrar na nova escola não sabia o que a professora lhe diria mas
encontrou um par de olhos verdes sentados na segunda fila.
Sorriu por fim.a